Amo a Morte.
A Boa Morte.
Essa que nos transforma em vida sem elogio à individualidade mas sempre honrando a integração no todo.
A Morte que nos devolve, enquanto gotas, ao oceano.
A Morte traz um sentido de eternidade inesgotável, nada na morte é fim ou estagnação. Tudo é processo, Alquimia, transformação, do corpo em chão. Da Alma em chama deste chão que é a Terra Sagrada dos ancestrais, ossos, pó, pedra, memória viva. É simultaneamente o lugar berço das sementes, descendentes, que desta transformação se erguem em tenaz resiliência e se tornam alimento de todos nós.
Amo a Morte, também a temo.
Sustento este paradoxo vivo e constante, entre a perda e a libertação. Respira-me a cada dia. Amo a Morte o suficiente para lhe saber reverente a força, o mistério, a desconhecida grandeza da qual também faço e farei parte, como tudo e todos aqueles que amo. O temor não apaga o Amor, porque só amando em reverência a Morte podemos verdadeiramente amar a Vida.
A Vida não é jogar às escondidas, deixar de viver por medo da Morte. A Vida é antes caminhar na presença do medo e do amor de mãos dadas como irmãos que comunicando entre si, nos ensinam.
A maior bravura é assumir a vulnerabilidade com inteireza e honestidade.
Para os antigos celtas o dia começa no crepúsculo. O ano começa no ponto de maior escuridão. Verdadeiramente, para os povos primevos na observação da Natureza , a vida humana e animal inicia na escuridão do ventre materno, a vida vegetal inicia na escuridão da Terra, ventre da semente.
Ao honrar a Morte, estamos, na verdade, a honrar o início da Vida.
A Morte aqui nas terras do extremo Atlântico ocidental é o fim da estação solar e quente. A partir daqui mergulhamos na profundidade da noite escura e fria. Há que honra-la cultivando o fogo do lar, o fogo do afecto.
O fogo do lar garantia a vida até de manhã, nas casas de pedra dos nossos antepassados. Este fogo é um labor, braseiro sem acendalhas nem electricidade ou toda a madeira que o dinheiro compra tem o valor do equilíbrio e não do excesso. Cuidar o fogo da vida perante a reverente eminência da morte é a nossa nobre missão.
Há uma velha história de uma velha mulher que vivia só e todas as noites convidava a morte para tomar chá. Acendia o braseiro ao pôr do Sol, punha a mesa com duas chávenas, preparava chá e pão de ervas.
A Morte não vinha, mas ela conversava com a sua presença Invisível.
No dia em que a Morte bateu à porta, gostou tanto de ser bem recebida que não a levou, voltou inúmeras vezes porque, pela primeira vez, era vista e amada.
Até ao dia em que a Mulher pediu à Morte para ir com ela, seguirem juntas como comadres, para o outro lado do rio, onde continuaria a fazer chá para que sempre conversassem.
É que quem vive na companhia da Morte vive mais inteiramente.
Ainda bem que há quem dê nós ame os lugares sombrios e incomuns, no respeito absoluto do que são e sem os tornar outra coisa. Afinal, tudo e todos merecemos ser amados exactamente como somos.
Se é fácil? Não.
Porque deveria ser fácil?
No México a esta altura honra-se a Santa Morte, que é, ao contrário daqui, o início da estação solar e quente, a Primavera. Milhares de borboletas eclodem dos seus casulos após um ano de metamorfose. Um ano. Para viverem voando um só dia, algumas nem tanto.
A Morte é um sonho do qual acordamos para uma Vida de maior liberdade.
A Semente que desperta já traz a morte no coração, já traz o sentido de doação à Terra da qual nunca se aparta bem como a todas as relações vivas desta Terra da qual é parte.
Sim,
“A Morte transforma – nos a todos em anjos, e dá -nos asas onde tínhamos ombros, suaves como garras de Corvo.” *
Talvez por ter desejado a Morte em vida tanto tempo, talvez por ter testemunhado tantas mortes, talvez por gostar tanto de descobrir as histórias de vida e morte de quem vive antes de mim, a morte é também um lar. Uma casa sem paredes, a céu aberto, um bosque.
E no bosque, toda a morte é alimento.
Eu também assim sou e serei.
*Jim Morrison, magnânimo e eterno
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