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Oráculo d’Ossos

por Íris Garcia

Às vezes, quando a bruma adensa a serra e cobre cada pedra, planta e casa, sinto o seu suspiro e fico suspensa.
A presença inominável com que me abraça é fria, mas eu sempre preferi o frio, a chuva, a ventania, a tempestade, a bruma densa onde as sombras de prata ténue se tornam espaço liminal da revelação da realidade primordial.
Ela vem com ossos, os ossos são cantos, ecos, silêncios.
Ela vem sem ser convidada.
Traz a foice que rasga e arranca.
Quantos movimentos tem a foice?
Traz a morte que é colheita e a poda que é foco da força vital. Traz o grão que será pão e o grão que será semente e o grão que será pó do chão.
A dos Ossos desnuda as feridas que sangram e insistimos teimosamente em não ver.
Ela vem pelas plantas, pedras e caminhos onde a sombra e a luz se entrelaçam. Às vezes, ela revela aquele momento esquecido que ainda faz sangrar uma parte escondida de quem fomos e que não cicatrizou de forma íntegra em quem nos tornamos.
Ela tem cheiro, tem presença, tem até imagem mas de forma distinta.
Ela traz a melodia dos ossos chocalhando. Traz hastes quebradas e depostas à cintura. Traz ervas em torno de um avental tão imenso e outonal que percebemos que ela emana da Terra na forma que tem só para melhor se comunicar a nós sobre a beleza das coisas incomuns, doridas, sentidas, quebradas.
Cheira a musgo, a cogumelos coloridos recém nascidos de troncos podres e decaídos.
Cheira a mandrágora, meimendro, belladonna, estramonio, brugmansia, helebóro, erva-moura, baga de azevinho, teixo, urtiga. A todas as plantas ancestrais que assustaram os incautos na revelação.
Cheira a massa mãe de pães e filhós amassados por mãos de avós e benzeduras de azeite e mel nas noites mais duras.
A Senhora dos Ossos é Senhora do Pranto que quebra o quebranto que nos quebra.
Quando Ela chora:
traz a cadência da tempestade.
Da sua raiva brota a verdade.
Pode ser impetuosa ou gentil, avassaladora ou gradual. Ela é múltipla, não apenas dual, na sua expressão de alma e de tempo.
Ensina ora que a hora chegou e mata a procrastinação, ou que a hora não é chegada e a paciência necessária.
Ela é o Oráculo dos Ossos: aquela que vendo o que foi e com visão ampla e transversal, vê o que será. Porque a continuidade é uma linguagem.
Estamos apartados dessa linguagem circular e cíclica, só por isso perdemos a total capacidade de perceber no tempo a qualidade do ser e do acontecer.
Morre toda e qualquer sabedoria quando a natureza orgânica deixa de ser percepcionada enquanto pura filosofia na sua linguagem além palavras. Essa poesia sensorial que é conhecida pela expressão da experiência.
Hoje enquanto me visita deixo – me cair no seu colo de pedra firme de pedra pó.
Uivo no silêncio interno e inteiro a intensidade de sentir tanto. Lembro que só conhece a esperança quem acolhe o desespero.
Só conhece a fé quem a lavra na tristeza e luto. Só conhece a paz quem a forja no fogo da paixão pelo equilíbrio. Só conhece o equilíbrio quem sabe que o caos é sua mão operando através da ciclicidade necessária não só ao momento presente mas ao que foi e será.
Unem-se três mundos sempre: passado, presente, futuro. Cima, centro e baixo.
O interno só é inferno para quem não ousa encontrar nos ossos a visão.
Não temos outra escolha senão a consciência sistémica, que é a realidade primeira da vida orgânica e ao mesmo tempo é símbolo, geometria assimétrica repetida do micro ao macro na forma, no comportamento, na relação.
A Natureza não é e jamais será linha recta, e portanto a Alma também não. Cada osso é o princípio e fim de uma estrutura em movimento de evolução constante, não apenas para si mesma mas para todo o sistema vivo de que é parte integrante e que é integralmente parte de si.

O osso é a estrutura primeira e derradeira que te permite ser inteira num todo feito de partes que se comunicam em distintas medidas e densidades.

Olha bem, como olho de velha e de criança. Ela está aí.
Chamando, chamando por ti.
Nas três vias da encruzilhada que falam de idade e direcção.
Nas meias palavras que formam o encantamento que é sempre parte intenção parte ensinamento.

Escuta bem, Ela está aí.
Na calada da noite e no raiar primeiro da manhã. Enquanto sonhas, despertas, teces e fias a continuidade dos dias. Também ela tece o teu coração, na palma enrugada mapa de múltiplos caminhos da sua intemporal mão visão.

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Íris Garcia

AUTORA

Sou Mulher, Mãe, Mamífera, neuro-diversa e altamente sensível.

O meu trabalho é o entrelaçamento vivo de animismo, corpo, herbalismo e terapia.

Terapeuta de trauma, educadora eco-somática, herbalista, doula de nascimento, autora, bailarina, cerimonialista, investigadora do animismo (xamanismo) bio-regional celtibérico.

Curiosa e devota dos caminhos vivos que mapeiam o chão e a alma.

~

Todos os conteúdos são da autoria de Íris Garcia, que como criadora intelectual dos textos, detêm o direito autoral das mesmas sob a Licença Pública CC BY-NC-ND

Íris Garcia

Sou Mulher, Mãe, Mamífera, neuro-diversa e altamente sensível.
O meu trabalho é o entrelaçamento vivo de animismo, corpo, herbalismo e terapia. 
Actuo enquanto Terapeuta de trauma e doula, especializada em saúde feminina, trauma gestacional, de parto, pós parto, maternidade, perda e interrupção gestacional, trauma transgeracional, alta sensibilidade e neuro-diversidade. Educadora eco-somática, de dança ancestral ritual, animismo e paganismo Ibérico, centrado no culto das Senhoras enquanto Natureza Selvagem.Herbalista especializada em saúde da Mulher,  cozinha medicinal, tradições populares, eco-mitologia e culto pagão das plantas. Investigadora voraz, criadora ardente, facilitadora e autora no compromisso do cuidado ao sensível e ao profundo. Curiosa e devota dos caminhos vivos que mapeiam o chão e a alma.

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Todos os conteúdos são da autoria de Íris Garcia, que como criadora intelectual dos textos, detêm o direito autoral das mesmas sob a Licença Pública CC BY-NC-ND