A cultura da denúncia também resulta do trauma da perseguição.
O ostracismo, a humilhação social, a ridicularização, a ofensa são formas de punição severas, com graves danos psico-emocionais e que marcam para sempre a não pertença de alguém ao lugar onde vive e às pessoas da comunidade em que se insere.
As bruxas deixaram de ser pessoas, perderam o rosto, os títulos que definiram o seu saber, o direito à sua opinião e passaram a ser figuras temíveis, mas também ridículas, estúpidas e sem validade ou até identidade individual. Vejamos: quem de nós conhece o nome ou obra de alguém que tenha sido condenado na inquisição?
Venho de uma família de origem basca, outra sefardita, também de uma família de curandeiras e parteiras com sangue português, galego, francês e africano. Famílias que formam uma trança.
Famílias que perderam até o seu apelido.
Que se tornaram Jesus, dos Santos, Maria, para apagar os traços da perseguição.
A minha bisavó materna alterou os apelidos dos filhos, como o dela fora alterado, como forma de sobrevivência. Assim os filhos não têm fio de relação com os pais nem mães, são menos sujeitos a punição.
Séculos e séculos desta prática meandram em todo o Portugal. Apelidos perdidos, mudados para formas cristianizadas, famílias sem ancestralidade ou direito a existir. Milhares delas, das nossas.
Durante toda a minha infância, desde que me recordo, tive sonhos onde era ou via pessoas serem, perseguidas.
Refugiava-me em grutas, debaixo das folhas do chão, silenciosa, sozinha.
Sonhos onde ardia ou via arder.
Não percebia estes sonhos. Não os contava, não queria assustar a minha mãe.
Eu dizia que era uma bruxa que curava, e era isso que eu ia ser quando fosse grande. Não havia romance aqui, história que suportasse esta imagem, era simples e claro como água na minha criança. Essa Bruxa curava, não era de todo como as das histórias.
Quando, muitos anos mais tarde, na escola começamos a estudar a história da idade média, os sonhos puderam ter forma.
É possível sonhar com o que não vivemos?
É.
É possível sonhar com o que não sabemos que existe?
É.
Eu sonhava persistentemente com quem era perseguida apenas por serem quem era, por vir de onde viera, por fazer o que sabia fazer de melhor para a suas comunidade.
A perseguição tornou-se na nossa família, na sua trança, um vício de auto-superação, exigência, impecabilidade, desconfiança e ultra independência constante. Também herdamos não só os sonhos, mas os traços de personalidade que respondem a trauma e são legado dos nossos antepassados para a sobrevivência.
Aos 14 anos o meu pai questionou a Bíblia e foi levado pela polícia do estado. Há questionamentos que se herdam. Correm no nosso sangue.
O nosso único património é a liberdade de sentir, ser e pensar.
Num tempo em que ser bruxa se tornou moda, convém lembrar não só quem eram estas mulheres, mas também que não foram somente as bruxas a arder na fogueira real ou simbólica da inquisição e da opinião pública. Foram judeus, berberes, servos, escravos, refugiados, foram curandeiras que não obedeciam ao início feroz da academia conforme se construiu até hoje. Foram as mulheres que abortaram ou apoiaram outras na interrupção da gravidez, foram filósof@s, pensadores que não viam moral nem ética no sistema vigente e por isso não lhe obedeciam. Foram homossexuais, lésbicas, mulheres que recusaram casamento, foram mães solteiras e mulheres com bens financeiros gerados e geridos unicamente por si. Foram as nossas tribos e comunidades ancestrais não cristãs e que não viam no rei um líder. Foram mulheres abusadas, violadas, vítimas de incesto que foram culpadas pelos crimes sobre si perpetuados. Foram crianças (sim, muitas), sem direito à vida, porque a vida é santa no útero mas tantas vezes purgatório na sociedade.
Dizer que se é bruxa é brutal.
Não é um romance esotérico muito menos pode ser um negócio ou idolatria. Toda a ficção espiritual, literária e/ou de entretenimento actual em torno da Bruxa difunde uma imagem ofensiva e desprovida de profundidade, imbuída numa falácia fantasiosa sem identidade madura ou real.
A Bruxa é um hino à evolução psicológica, social, política, pedagógica, artística, científica, espiritual através da revisão de cada corrupção dos valores da humanidade, dos direitos humanos, da etnicidade, da liberdade sexual, da igualdade de género, da relação com a Natureza enquanto Divindade suprema.
Continuamos a arder onde ardíamos, que este fogo nos oriente: às cinzas o que tem de findar-se, ao erguer da chama o que é urgente ter forma e ser caminho.
Segundo a estimativa do historiador José Pedro Paiva, terão havido cerca de 40.000 denúncias no período da inquisição, da qual cerca de 6000 resultaram em condenações com graus de gravidade variável entre a tortura, humilhação pública, ostracismo e morte de diversas formas. Arder na fogueira não era a única pena inquisitorial, longe disso. O historiador salvaguarda, no entanto, que terão havido muito mais denúncias e vítimas do tribunal do santo ofício que não estarão registados, tal como acontece no Estado Novo, em que ainda hoje há milhares de portugueses desaparecidos depois das denúncias feitas e em que tal como na inquisição as detenções eram maioritariamente feitas na calada da noite.
A discrepância entre o número de denúncias e acusações formais já denota que denunciar se tornou a forma mais eficaz de não ser perseguido, salvaguardando a si e aos seus próximos.
É exactamente isto que continuamos a perpetuar. Este santo ofício da opinião do outro, quando a reduzimos a uma palavra ou frase retirada de contexto, que nos serve de pretexto para denegrir, acusar, culpar e desvalorizar aquilo que de nós difere e quem tem outras perspectivas. Porque a nossa rigidez também protege a nossa pertença ao grupo de pessoas que se nos assemelha e a quem não queremos deixar de pertencer. Porém, cria reformas de privilégio cujo preço é o bem estar, integridade psicológica, física e social de quem está de fora.
Afinal, o lado romântico da bruxaria não existe para quem teve vítimas directas.
O pior do Santo ofício não foi a inquisição em si mas a cultura da denúncia, que semeada por 285 anos consecutivos, nunca se afastou da cultura portuguesa desembocando num estado Novo cuja PIDE era suportada por denunciante civis, fosse porque fosse a razão.
Em tempos em que nos convidam a ser polícias uns dos outros, a destruir seja quem for pela segurança individual em vez de comunicar e cooperar que são as mais eficazes estratégias de sobrevivência, vale a pena reflectir e compreender que a inquisição se tornou um movimento psico – social que continua a empoderar instituições que, para nos proteger, facilmente nos condenam.
As palavras de D. Manuel Clemente, bispo do Porto, acerca da Inquisição portuguesa:
“É uma grave advertência cultural, social e política, porque nos mostra que, num país em que há muito pouca independência e responsabilidade pessoal, geralmente quer as aspirações, quer os medos são de algum modo confiscados por instituições centrais e muito intolerantes. “
” Não é para culpabilizar a Inquisição por tudo aquilo que de negativo ainda está vivo na sociedade portuguesa, sobretudo na cultura portuguesa. Mas há ideias que nos parecem evidentes dessa perpetuação. Por exemplo: uma certa tendência para a submissão, a subserviência relativamente a poderes instituídos, quando eles são muito fortes. Isso pode ser visto como resultado da existência de uma poderosíssima instituição que durante anos obrigou as pessoas a aceitarem reverentemente determinadas ideias.”
História da Inquisição Portuguesa (1536-1821), dos historiadores Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva.
Qual é o preço de cada gesto e acção para quem não pensa, vive ou se posiciona como nós?
Se este balanço não for feito não saberemos a medida real do impacto seja de que medida for.
O que nos dizem este dados sobre a linha de tempo desde a instauração da inquisição, até hoje?
Quando debatemos medidas de protecção, não podem ser aceites medidas nem discursos que apoiem a cultura da denúncia, da repressão de liberdades civis que levaram décadas a erguer, muito menos de mecanismos de vigilância da vida privada de cidadãos. Porque está viva em nós a estratégia de denunciar e reprimir para nos sentirmos protegidos. Mas também está muito viva, pelo menos em alguns de nós (senão em todos), a sensação latente da perseguição sem justificação ou justiça.
0 comentários